“Quase ninguém viu” , contemplado com o prêmio João-de-Barro e Cátedra da Unesco, conta a história de uma pequena perereca que se perde e é recebida por uma família muito diferente da sua
“Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Quem disse isso foi o escritor Guimarães Rosa, mas poderia ser o personagem deste livro, se pudesse saltar das páginas e falar cara a cara com o leitor. “Quase ninguém viu” convoca leitores atentos a exercitar a curiosidade de ver o que (quase) ninguém vê. Marilda Castanha assina o texto da contracapa e deixa um gosto do que encontrar nessas páginas: “Afinal, o que são os afetos? Nascem conosco ou são construídos por nós? E mais: somos apenas um barulhinho de nada e sombras esquecidas?”.
Vencedor do renomado Prêmio João-de-Barro e da Cátedra da Unesco, o livro parece sussurrar uma verdade que insistimos em esquecer: a vida não acontece na superfície, nem das pessoas e nem dos acontecimentos.
A narrativa acompanha a vida de um pequeno girino que mora dentro de uma bromélia, uma flor que nasce do tronco das árvores. “E se um girino caísse de lá, se perdesse de sua família e fosse parar dentro de outra bromélia?”, pensou Aline quando teve a ideia da história. É justamente esse o enredo de “Quase ninguém viu”.
Ao despencar de sua casa-flor, o girino se depara com outra, totalmente diferente da sua. Ao ser recebido por esse novo núcleo familiar, o personagem vai vivendo sua vida enquanto se dá conta de que ele é o único diferente de todos os outros ali. “Entre um pulo e outro, cresceu diferente, mas não foi para os outros que apareceu a diferença, foi em seu próprio olhar”, diz o livro. Uma provocação para pensar sobre vínculos afetivos, segurança emocional, construção de identidade, empatia e muitas outras questões humanas universais.
Identidade e alteridade – Se o leitor deste livro tiver a curiosidade de pesquisar sobre como cultivar bromélias, verá que elas podem ser plantadas em vasos, mas também vai perceber que o seu esplendor só acontece mesmo em liberdade – exatamente como a vida de qualquer um de nós. Para a sorte da espécie humana, ao contrário das bromélias, a nossa floração não precisa acontecer apenas uma vez.
No livro, o personagem vai se dando conta disso ao reafirmar sua identidade em um meio tão diferente do dele. Ao dizer que o personagem encontrou “um novo lugar” para viver, a autora alarga a dimensão do que isso significa, tocando em temas sensíveis nos tempos atuais, como relacionar-se com o outro e celebrar as diferenças. “Hoje, mais do que nunca, estamos coletivamente em crise com nosso olhar para o outro, com como o outro nos vê, com as formas de mostrar”, afirma Aline Abreu.
A ideia do livro, conta a autora, nasceu em uma caminhada pela mata – mais especificamente, a Mata Atlântica – e, como costuma acontecer quando estamos em contato com a natureza, uma surpresa inesperada aconteceu quando ela percebeu uma flor. A partir daí, tudo é metáfora de como nos relacionamos com o nosso mundo interno e o universo ao nosso redor.
A própria construção do livro – a começar pela brincadeira do título “Quase ninguém viu” é um convite para que o leitor, seja ele criança, jovem ou adulto, leia nas entrelinhas, nas brechas e nos silêncios.
Com esmero gráfico e cuidado aos detalhes, “Quase ninguém viu” traz texto, imagem e projeto gráfico sofisticados do ponto de vista artístico e principalmente humano, ao mesmo tempo em que guarda toda a simplicidade para o convite que fica a quem lê: praticar mais o olhar para as coisas pequenas, desapercebidas e quase invisíveis do cotidiano. Afinal, se o título sugere que quase ninguém viu, é porque pelo menos um alguém reparou no que há para ser visto. Por que não sermos nós, leitores provocados por histórias escondidas?
Entrevista com a autora Aline Abreu
- Este livro inaugura uma nova fase do seu trabalho. O que mudou, por que?
Entre meu último livro com intenção de projeto narrativo autoral (“Menina amarrotada”) e este “Quase ninguém viu”, houve uma mudança significativa em minha prática profissional. “Menina amarrotada” foi lançado meses antes da defesa de minha dissertação de mestrado, e já indicava um fazer mais consciente, mas ainda era mais gerador de perguntas para minha reflexão teórica do que recebia influências da pesquisa desenvolvida no estudo do livro ilustrado. Já “Quase ninguém viu” foi um projeto longo, surgiu em 2008. Foram muitos anos de convivência com uma ideia que, para mim, era tão forte que não me deixou em paz até ser contada. Especialmente na fase final do trabalho, toda a reflexão da docência, que foi se constituindo também como campo de pesquisa a partir da defesa do mestrado em 2013, teve papel fundamental na busca por uma escritura mais consciente e segura.
- O protagonista da história é uma metáfora do nosso olhar que não vê? O que é ver (e, consequentemente, ser visto) para você?
Quando penso em “ver”, penso junto “sentir”. Em muitos casos, acho que não vemos o que não queremos ou não conseguimos sentir, o que é difícil suportar. O que não fomos ensinados a ver, é preciso aprender e ensinar a ver. Ensinar a ver é ensinar também que para ver é preciso um tempo diferente do tempo do cotidiano acelerado. Em minha experiência pessoal, só passei a sentir que sou vista à medida em que comecei a ver um pouco mais longe de mim e com isso me sinto mais segura para mostrar quem sou. Fui uma criança e jovem extremamente introspectiva e tímida, vivia entre a ambiguidade de sofrer por me sentir invisível e desejar ser invisível.
Então, esse nó do que é ou não visível sempre foi um ponto de interesse para mim e à medida em que fui crescendo, ampliando a minha visão de mundo e da arte este foco ganhou e ganha novas nuances a cada direção que se apresenta, a cada novo caminho que descubro ou que se mostra pelo olhar de outros.
Acho que hoje, mais do que nunca, estamos coletivamente em crise com nosso olhar para o outro, com como o outro nos vê, com as formas de mostrar. Para mim sempre fez todo sentido pensar no ser como valor em contraposição ao ter. E, num paralelo que me parece natural, cada vez mais tenho pensado em ser em contraposição a mostrar. Porque esse mostrar está atrelado às nossas relações de consumo. Também desejo me mostrar. Mas como? Antes, quero ver. E então desejo mostrar algumas formas possíveis de ver. Há infinitas formas de ver. E essa conversa é infinita rsrs Não tenho certeza mas acho que o protagonista é meu alter ego. rsrs. Eu sou inquieta com meus pontos de vista, nunca tenho certeza. Isso traz angústia mas traz também liberdade para mudar.
- Ao seu ver, qual a importância de falar sobre diferenças e construção de identidade com as crianças?
Acho fundamental falar sobre isso com as crianças para tentarmos construir um futuro onde seja possível ver o outro, e não a nossa ideia do que possa ser o outro, que não é visão, mas ilusão. Ver o outro faz com que a criança (e adulto) possa se perceber diferente, possa sentir que não está sozinha em suas diferenças, enfim, é fundamental saber que não somos a única forma de ser e de viver, né. Às vezes, é difícil conseguir isso em uma família ou comunidade onde o “certo” é ser de uma determinada forma. A arte pode ajudar aí. Não só como ferramenta formadora mas como experiência de vida. Cada vez mais, acredito no fazer – principalmente na recuperação do fazer que já existiu (honrando as identidades, as raízes) e que pode ser atualizado, ressignificado – como aproximação para o ver.
- A ilustradora Kveta Pacovska diz que um livro ilustrado é a primeira galeria de arte de uma criança. Um livro como esse traz essa afirmação para a realidade, ao apresentar uma obra que não é óbvia nem da perspectiva do texto e nem da imagem. Como você percebe isso, e, principalmente, o que essa afirmação significa para você como artista do livro?
Esta frase da Kveta é maravilhosa porque ela mostra que a arte é uma forma de pensar e se relacionar com o mundo, o que desloca a questão do consumo. Porque se a arte é um modo de existir e de ler o mundo a gente pode fazer isso quando come, quando vai nadar no rio, quando desenha no chão de terra com um galho ou quando está dentro de uma galeria de arte em São Paulo ou em Berlim. Ou quando está em nossa casa com um livro ilustrado no colo. A dificuldade está na realidade massacrante da luta pela sobrevivência, que afasta as possibilidades de aprendizado e valorização dessas ações como práticas artísticas.
Como alguém que nunca foi ensinado a ver por esse prisma da valorização das suas raízes, das suas produções, vai passar adiante a riqueza do que é olhar e realmente ver? A arte age na ampliação do olhar para a diferença como valor, como potencial, e não como algo a se temer. Estes livros incríveis que a Pakovska faz estão ensinando o que é a arte, ensinam a pegar o conhecido e recombinar para chegar ao novo, ensinam a incorporar um dado novo na sua rede de elementos já familiares e com isso mudar todo o contexto, mostram, entre outras coisas, que para ver é preciso também outro tempo, porque todos esses processos de fazer o olho ver são complexos e necessitam de tempo para reflexão. Por isso, do meu jeito, acho que vale a pena fazer um livro que pede tempo para ser lido. É uma tentativa tímida de contribuir com uma gota neste oceano, também é minha tentativa de não perder a esperança em saídas para buracos aparentemente sem fundo.
- Nesses 10 anos que se passaram até o livro ser publicado, você deixou de lado a ideia de fazer um livro-imagem e trouxe a palavra para a história. O que motivou essa decisão, e o que mudou depois que ela entrou?
A entrada da palavra mudou tudo. Para ser honesta, naquele momento, em 2008, eu queria fazer um livro-imagem. Era isso. E aí apareceu esta história. Então pensei: vou fazer um livro imagem com a história de um girino que despenca de uma bromélia. Mas essa história não nasceu pra ser livro-imagem. Só que eu ainda não sabia.
Recentemente, ouvi o escritor português Gonçalo M. Tavares falar sobre a criação literária e sobre como não faz sentido primeiro definir o gênero literário (romance, conto, poesia, etc) para depois escrever o texto; você escreve um texto. Isso fez um sentido profundo para mim ao pensar sobre o processo de escritura do “Quase ninguém viu”. Porque o livro foi se construindo quando me desapeguei da forma previamente definida. Quando retomei o projeto, fui folheando o boneco antigo que eu tinha e imediatamente senti que precisava de palavras para contar aquela história. E aí, claro, precisei mudar completamente todas as imagens e o formato do livro, a montagem, etc. Eu fiz e depois fui ver o que ele era.
Atualmente, estou no mesmo processo. Estou escrevendo um livro que não sei o que vai ser. Quando escrevi a primeira versão eu achava que seria um livro ilustrado. Um ano depois já achei que talvez seja um conto, e agora já estou achando que é um conto ilustrado, mas não sei bem.
- Um exercício imaginativo: o que as crianças leitoras deste livro poderiam dizer, fazer ou pensar após a leitura que te faria ficar realizada como artista?
Que pergunta difícil! Meu maior desejo é que aconteça alguma conexão entre o livro e quem lê, que fique plantada alguma pergunta. A minha pretensão é que a duração da leitura se distenda, como acontece comigo quando leio um livro do qual gosto muito. O livro acaba e eu continuo nele. Pensando nas crianças eu ficaria realizada se elas também sentissem que é um livro para elas e isso pode acontecer de tantas formas… Pode ser na emoção, digo na identificação com alguma emoção tratada na narrativa, pode ser com o aparecimento de muitas dúvidas e perguntas, pode ser com o simples fato de acompanhar atentamente o passar das páginas, pode ser na vontade de pegar um material diferente para desenhar porque viu no livro. Acho que espero curiosidade, interesse questionador, aquela inquietação que faz querer voltar ao livro.
- Apesar de esse livro ter sido construído durante 10 anos, parece que foi escrito para o contexto social de hoje. Como isso se deu?
Isso, pra mim, já é elogio. Porque a busca por construir um projeto narrativo que possibilite a distenção da duração da leitura é algo que ultrapassa a percepção de tempo, tem a ver com a quantidade de relações que podem ser criadas a partir da leitura daquilo que está posto intencionalmente por mim.
Como costumo pensar sobre o desenho, acho que dá pra estender à escrita. É que são atividades mentais, claro, mas também físicas, que passam pelo corpo, pelo meu corpo que vai registrando essa história e agora não vejo muita possibilidade de fazer um livro que fala de afeto e famílias sem sentir que tem tudo a ver com nosso momento político. Mesmo que eu tenha começado há muito, porque os pequenos detalhes finais do processo podem mudar muita coisa.